ARMAZENAMENTO
D’ÁGUA EM PEDIMENTOS DETRÍTICOS[1]
Gilberto Osório de Andrade
Resposta
dada a uma consulta dirigida ao coordenador do ICT pelo deputado estadual dr
.Osvaldo Coelho:
“Atendo,
com muito prazer, pela presente, à solicitação que V. me fez de que lhe resumisse por escrito as
observações a que recentemente procedemos, acompanhados da profa. Rachel Caldas
Lins, assistente de Geomorfologia da Escola de Geologia de Pernambuco, em
meados de agosto próximo passado, durante excursões feitas em várias direções
no município de Petrolina, deste Estado.
Essas observações tiveram como principal motivação verificarmos a possibilidade de serem
propostos critérios morfológicos para a determinação, ali, de áreas suscetíveis
de prospecção d’água do subsolo . Critérios substancialmente morfológicos que
se acrescentassem aos tectônicos propriamente ditos, ou seja: àqueles que visam
os mesmos resultados mediante: a) identificação foto-analítica de ocorrência de
fraturas adaptadoras das linhas de drenagem ; b) determinação do mergulho de
camadas ( de gnaisses, no caso).
Devo
preliminarmente acentuar que, como professor de Geomorfologia da Escola de
Geologia de Pernambuco, insisto sempre com os alunos que:
1º a utilização de critérios morfológicos para a
pesquisa d’água subterrânea é de particularíssimo interesse nas regiões
semi-áridas;
2º porque nas áreas evoluídas segundo o sistema
morfoclimático de erosão semi-árido ( e estruturalmente representadas, no caso,
por porções de velho escudo cristalino) não há que pensar , apenas, em
afloramentos e mantos de alteração in situ (estes últimos , de resto,
ordinariamente infreqüentes ou de fraca espessura); e sim, também, levar em
conta depósitos de tipo especial ( pedimentos detríticos), que são formações sedimentares,
portanto suscetíveis em princípio de armazenamento d’água meteórica.
3º mas que a utilização de tais critérios
morfológicos não deprecia e muito menos invalida os critérios tectônicos;
devem, em lugar disso, coadjuvar as pesquisas feitas à base destes últimos, ou
ainda operar por si mesmos, quando os tectônicos não têm aplicação prática
possível.
Toda
a área correspondente ao município de Petrolina e aos adjacentes apresenta-se
extensivamente nivelada por um considerável aplanamento cenozóico (possivelmente
plio-pleistocênico), que se consumou à custa dum relevo relativamente bem
movimentado. Esse relevo pré-pliocênico seria, assim registo de paleoclima
menos severo do que o atual e, em qualquer hipótese, bem diverso daquele sob a
qual o aplanamento veio a evoluir. A acentuação dos desníveis dum relevo jovem,
e mesmo já maduro, ocorre, com efeito, na razão
direta da concentração de drenagem ( erosão linear, de escavação de
talvegue); essa concentração é típica dos climas com precipitações abundantes
ou, pelo menos, bem distribuídas (paleoclima pré-pliocênico úmido tropical, no
caso, segundo se deve inferir da situação geográfica da área) . Enquanto isso ,
as superfícies de aplanamento se elaboram sob condições climáticas
caracterizadas por chuvas de volume anual escasso, concentradas , porém, numa
curta estação, dando processos de escoamento superficial difuso (paleoclima)
plio-pleistocênico semi-árido, semelhante ao atual , senão bem mais severo).
Do
relevo que precedeu o aplanamento, persistem hoje na área formas residuais que
documentam a sucessão dos eventos cenozóicos indicados: cristas e formas
menores isoladas ( inselbergue), que são remanescentes atuais de antigas massas
progressivamente reduzidas mediante recuo das escarpas , e cujos perfis
documentam, inequivocamente, os mencionados efeitos dum sistema de erosão
semi-árido.
O
perfil característico das escarpas em
recuo ao longo dum processo de aplanamento é o chamado perfil de pedimento: do
alto para baixo, ligeiramente côncavo a princípio, e depois projetando –se em plano inclinado para o
talvegue ou talvegues vizinhos. Trata-se de encostas, ou vertentes, cuja
evolução se caracteriza pela rapidez com que os produtos da alteração do
embasamento são removidos para baixo, pelos aguaceiros torrenciais típicos do
semi-árido. Em conseqüência disso, as partes superior e média da vertente
permanecem desprovidas de manto de
alteração, e o substrato aflora
geralmente (pedimento rochoso), sob a
forma de “ lajedos” . Quanto aos materiais postos assim em movimento ao longo
do declive, sobrecarregam a drenagem que os transporta :uma vez alcançada a
base da encosta, a competência da descarga se anula e os detritos são
abandonados em massa (pedimento detrítico).
Os
produtos clásticos dessarte carregados para baixo e sedimentados como pedimento
detrítico são , portanto, materiais resultantes de morfogênese mecânica,
isto é,: de desagregação com que mal interferem, ou mesmo não interferem,
processos químicos de decomposição ( sistema morfoclimático semi-árido). Esses
depósitos de pedimentos detríticos são facilmente identificáveis : o material é
rudáceo (anguloso , por não Ter sofrido longo transporte); são desprovidos de
estratificação aparente, ou têm estratificação cruzada ( efeitos de sucessivos suprimentos
que a drenagem episódica e sobrecarregada ora retoma, ora abandona); são mal
selecionados (lâminas d’água que deslocam e misturam partículas dos mais
diversos calibres); apresentam freqüentemente na massa, grânulos e seixos
disseminados nela (alta densidade do
meio de remoção); e finalmente contêm partículas de minerais inalterados ( como
o arcósio).
Como
V. está lembrado, nossas investigações se orientaram insistentemente, durante
as excursões, para a identificação desses depósitos. E as indicações que
fizemos, então, de áreas prospectáveis, tomaram como índice principal a
evidência desses pedimentos detríticos, ali onde os leitos atuais dos riachos
deixam-nos expostos e com satisfatória espessura.
Esses
registos sedimentológicos, aliás, nem sempre ao alcance dum controle direto, foram por nós associados à
topografia. A partir, por exemplo, do alto das cristas residuais na região
ocidental do município, pudemos chamar a atenção para o fato de que, ao longo
do perfil já descrito linhas atrás, a cada pedimento rochoso sucede-se um
pedimento detrítico. O aspecto da caatinga ( de melhor porte e muito menos
ressequida, quando não verdejante, nos pedimentos detríticos), bem como as
pequenas lavouras permanentes e os bananeirais não irrigados coincidem, em
posição relativa, com esses depósitos de grande porosidade, isto é: dotados de
acentuada capacidade de absorção e de armazenamento d’águas pluviais. Dá V. a
notícia, com efeito, duma perfuração bem sucedida , com poço de profundidade
relativamente pequena e vazão satisfatória, precisamente num dos lugares por
nós indicados como devendo ser prospectados com boas esperanças.
Restaria ainda mencionar que,
consumando-se um apanhamento semi-árido por coalescência de pedimentos, regiões
inteiras se apresentam, atualmente, sem mais formas residuais sobre aqueles
eminentes. Quando isso acontece, é óbvio
que o controle topográfico do perfil de pedimento não pode ser
diretamente utilizado. Contudo, como o aplanamento se opera mediante recuo de
escarpas, e como os pedimentos
detríticos acumulados na base dessas vertentes hoje desaparecidas, permanecem
em qualquer caso incorporados ao plano geral da superfície, há sempre que Ter
em vista a hipótese de que cada grande
extensão consumadamente aplanada jaz na esteira do mencionado recuo . E,
portanto, conterá, em princípio, áreas sedimentares bem confinadas em desvãos
do embasamento, como depósitos correlativos do aplanamento. Toda a região que ,
sem formas residuais, se alastra para leste das cristas existentes na fronteira
ocidental do município , está nesse caso, e merece, portanto, ser considerada.
Finalmente,
parece-nos necessário referir que, durante um ciclo de pedimentação, Ter-se-ão
sucedido, numa certa medida, flutuações climáticas. Assim, quando sobrevêm
condições climáticas menos severas, ou de maior umidade, a morfogênese mecânica
nas encostas cede o passo a processos de alteração química ; e quando se
restauram, a seguir, as condições semi-áridas, o material que é então removido
para o pedimento detrítico apresenta-se argiloso ou síltico-argiloso. Temos
tido a oportunidade de controlar registos dessa natureza noutras áreas de
pedimentação do semi-árido em Pernambuco.
A importância do fato reside em que, quando se intercalam, num pedimento
detrítico, depósitos rudáceos e horizontes argilosos, estes costumam funcionar
como camadas de impermeabilização capazes de manter lençóis freáticos a diferentes profundidades abaixo
da superfície.
Espero
que estas sumárias informações e o rascunho representativo que as acompanham
satisfaçam seu interesse. Se não, continuo ao seu dispor, com o melhor apreço.
Recife,
23 de outubro de 1963
Gilberto
Osório de Andrade
[1] Este artigo foi na verdade um documento encaminhado pelo geógrafo
Gilberto Osório de Andrade ao então deputado estadual dr. Osvaldo Coelho , em
1963. No texto, o autor examina com muita propriedade e com uma linguagem
bastante didática alguns aspectos da geomorfologia do semi-árido. Em face da importância que tem para o processo ensino-aprendizagem da
presente disciplina, ministrada no Curso de Especialização em Programação de
Ensino em Geografia, resolvemos aqui transcrever o artigo supracitado,
publicado originalmente na revista Arquivos
do ICT, da Universidade do Recife, nº 2, outubro de 1964. ( Nota de L.
Jatobá)
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