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quinta-feira, 2 de junho de 2016

ARMAZENAMENTO D’ÁGUA EM PEDIMENTOS DETRÍTICOS

ARMAZENAMENTO D’ÁGUA EM PEDIMENTOS DETRÍTICOS[1]

 Gilberto Osório de Andrade


Resposta dada a uma consulta dirigida ao coordenador do ICT pelo deputado estadual dr .Osvaldo Coelho:

         “Atendo, com muito prazer, pela presente, à solicitação que V. me  fez de que lhe resumisse por escrito as observações a que recentemente procedemos, acompanhados da profa. Rachel Caldas Lins, assistente de Geomorfologia da Escola de Geologia de Pernambuco, em meados de agosto próximo passado, durante excursões feitas em várias direções no município de Petrolina, deste  Estado. Essas observações tiveram como principal motivação  verificarmos a possibilidade de serem propostos  critérios morfológicos  para a determinação, ali, de áreas suscetíveis de prospecção d’água do subsolo . Critérios substancialmente morfológicos que se acrescentassem aos tectônicos propriamente ditos, ou seja: àqueles que visam os mesmos resultados mediante: a) identificação foto-analítica de ocorrência de fraturas adaptadoras das linhas de drenagem ; b) determinação do mergulho de camadas ( de gnaisses, no caso).

         Devo preliminarmente acentuar que, como professor de Geomorfologia da Escola de Geologia de Pernambuco, insisto sempre com os alunos que:
1º a utilização de critérios morfológicos para a pesquisa d’água subterrânea é de particularíssimo interesse nas regiões semi-áridas;
2º porque nas áreas evoluídas segundo o sistema morfoclimático de erosão semi-árido ( e estruturalmente representadas, no caso, por porções de velho escudo cristalino) não há que pensar , apenas, em afloramentos e mantos de alteração in situ (estes últimos , de resto, ordinariamente infreqüentes ou de fraca espessura); e sim, também, levar em conta depósitos de tipo especial ( pedimentos detríticos), que são formações sedimentares, portanto suscetíveis em princípio de armazenamento d’água meteórica.
3º mas que a utilização de tais critérios morfológicos não deprecia e muito menos invalida os critérios tectônicos; devem, em lugar disso, coadjuvar as pesquisas feitas à base destes últimos, ou ainda operar por si mesmos, quando os tectônicos não têm aplicação prática possível.

         Toda a área correspondente ao município de Petrolina e aos adjacentes apresenta-se extensivamente nivelada por um considerável aplanamento cenozóico (possivelmente plio-pleistocênico), que se consumou à custa dum relevo relativamente bem movimentado. Esse relevo pré-pliocênico seria, assim registo de paleoclima menos severo do que o atual e, em qualquer hipótese, bem diverso daquele sob a qual o aplanamento veio a evoluir. A acentuação dos desníveis dum relevo jovem, e mesmo já maduro, ocorre, com efeito, na razão  direta da concentração de drenagem ( erosão linear, de escavação de talvegue); essa concentração é típica dos climas com precipitações abundantes ou, pelo menos, bem distribuídas (paleoclima pré-pliocênico úmido tropical, no caso, segundo se deve inferir da situação geográfica da área) . Enquanto isso , as superfícies de aplanamento se elaboram sob condições climáticas caracterizadas por chuvas de volume anual escasso, concentradas , porém, numa curta estação, dando processos de escoamento superficial difuso (paleoclima) plio-pleistocênico semi-árido, semelhante ao atual , senão bem mais severo).

         Do relevo que precedeu o aplanamento, persistem hoje na área formas residuais que documentam a sucessão dos eventos cenozóicos indicados: cristas e formas menores isoladas ( inselbergue), que são remanescentes atuais de antigas massas progressivamente reduzidas mediante recuo das escarpas , e cujos perfis documentam, inequivocamente, os mencionados efeitos dum sistema de erosão semi-árido.

         O perfil característico  das escarpas em recuo ao longo dum processo de aplanamento é o chamado perfil de pedimento: do alto para baixo, ligeiramente côncavo a princípio, e depois  projetando –se em plano inclinado para o talvegue ou talvegues vizinhos. Trata-se de encostas, ou vertentes, cuja evolução se caracteriza pela rapidez com que os produtos da alteração do embasamento são removidos para baixo, pelos aguaceiros torrenciais típicos do semi-árido. Em conseqüência disso, as partes superior e média da vertente permanecem  desprovidas de manto de alteração, e o  substrato aflora geralmente  (pedimento rochoso), sob a forma de “ lajedos” . Quanto aos materiais postos assim em movimento ao longo do declive, sobrecarregam a drenagem que os transporta :uma vez alcançada a base da encosta, a competência da descarga se anula e os detritos são abandonados em massa (pedimento detrítico).

         Os produtos clásticos dessarte carregados para baixo e sedimentados como pedimento detrítico são , portanto, materiais resultantes de morfogênese mecânica, isto é,: de desagregação com que mal interferem, ou mesmo não interferem, processos químicos de decomposição ( sistema morfoclimático semi-árido). Esses depósitos de pedimentos detríticos são facilmente identificáveis : o material é rudáceo (anguloso , por não Ter sofrido longo transporte); são desprovidos de estratificação aparente, ou têm estratificação cruzada ( efeitos de sucessivos suprimentos que a drenagem episódica e sobrecarregada ora retoma, ora abandona); são mal selecionados (lâminas d’água que deslocam e misturam partículas dos mais diversos calibres); apresentam freqüentemente na massa, grânulos e seixos disseminados  nela (alta densidade do meio de remoção); e finalmente contêm partículas de minerais inalterados ( como o arcósio).

         Como V. está lembrado, nossas investigações se orientaram insistentemente, durante as excursões, para a identificação desses depósitos. E as indicações que fizemos, então, de áreas prospectáveis, tomaram como índice principal a evidência desses pedimentos detríticos, ali onde os leitos atuais dos riachos deixam-nos expostos e com satisfatória espessura.

         Esses registos sedimentológicos, aliás, nem sempre ao alcance dum controle  direto, foram por nós associados à topografia. A partir, por exemplo, do alto das cristas residuais na região ocidental do município, pudemos chamar a atenção para o fato de que, ao longo do perfil já descrito linhas atrás, a cada pedimento rochoso sucede-se um pedimento detrítico. O aspecto da caatinga ( de melhor porte e muito menos ressequida, quando não verdejante, nos pedimentos detríticos), bem como as pequenas lavouras permanentes e os bananeirais não irrigados coincidem, em posição relativa, com esses depósitos de grande porosidade, isto é: dotados de acentuada capacidade de absorção e de armazenamento d’águas pluviais. Dá V. a notícia, com efeito, duma perfuração bem sucedida , com poço de profundidade relativamente pequena e vazão satisfatória, precisamente num dos lugares por nós indicados como devendo ser prospectados com boas esperanças.

Restaria ainda mencionar que, consumando-se um apanhamento semi-árido por coalescência de pedimentos, regiões inteiras se apresentam, atualmente, sem mais formas residuais sobre aqueles eminentes. Quando isso acontece, é óbvio  que o controle topográfico do perfil de pedimento não pode ser diretamente utilizado. Contudo, como o aplanamento se opera mediante recuo de escarpas, e como  os pedimentos detríticos acumulados na base dessas vertentes hoje desaparecidas, permanecem em qualquer caso incorporados ao plano geral da superfície, há sempre que Ter em vista a hipótese de que cada  grande extensão consumadamente aplanada jaz na esteira do mencionado recuo . E, portanto, conterá, em princípio, áreas sedimentares bem confinadas em desvãos do embasamento, como depósitos correlativos do aplanamento. Toda a região que , sem formas residuais, se alastra para leste das cristas existentes na fronteira ocidental do município , está nesse caso, e merece, portanto, ser considerada.

         Finalmente, parece-nos necessário referir que, durante um ciclo de pedimentação, Ter-se-ão sucedido, numa certa medida, flutuações climáticas. Assim, quando sobrevêm condições climáticas menos severas, ou de maior umidade, a morfogênese mecânica nas encostas cede o passo a processos de alteração química ; e quando se restauram, a seguir, as condições semi-áridas, o material que é então removido para o pedimento detrítico apresenta-se argiloso ou síltico-argiloso. Temos tido a oportunidade de controlar registos dessa natureza noutras áreas de pedimentação do semi-árido em Pernambuco.  A importância do fato reside em que, quando se intercalam, num pedimento detrítico, depósitos rudáceos e horizontes argilosos, estes costumam funcionar como camadas de impermeabilização capazes de manter lençóis  freáticos a diferentes profundidades abaixo da superfície.

         Espero que estas sumárias informações e o rascunho representativo que as acompanham satisfaçam seu interesse. Se não, continuo ao seu dispor, com o melhor apreço.

Recife, 23 de outubro de 1963

Gilberto Osório de Andrade



[1] Este artigo foi na verdade um documento encaminhado pelo geógrafo Gilberto Osório de Andrade ao então deputado estadual dr. Osvaldo Coelho , em 1963. No texto, o autor examina com muita propriedade e com uma linguagem bastante didática alguns aspectos da geomorfologia do semi-árido.  Em face da importância que tem  para o processo ensino-aprendizagem da presente disciplina, ministrada no Curso de Especialização em Programação de Ensino em Geografia, resolvemos aqui transcrever o artigo supracitado, publicado originalmente na  revista Arquivos do ICT, da Universidade do Recife, nº 2, outubro de 1964. ( Nota de L. Jatobá)

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